Laboratórios de proximidade: A Nova Geração da Música Instrumental Brasileira
A música instrumental brasileira vive um ciclo de renovação ancorado em palcos de proximidade em São Paulo, com casas como o JazzB funcionando como verdadeiros laboratórios onde o encontro entre músicos e público molda repertórios, areja a improvisação e atualiza a tradição. A cada noite, formações testam o limite entre escrita e improvisação, e esse teste ganha rosto quando surgem exemplos como o do piano inventivo de Amaro Freitas (em turnês constantes pela Europa e EUA) e de Salomão Soares (presença frequente em festivais internacionais), a guitarra de Pedro Martins (vencedor do Montreux Jazz Guitar Competition) ou os sopros como os de Thiago França (Metá Metá, circulação ampla no exterior), que definem contornos de linguagem que já nascem cosmopolitas
Nesse circuito, o violino de Ricardo Herz (formação em Paris e agenda europeia recorrente) injeta lirismo rítmico que conversa tanto com o choro quanto com a música de câmara popular; o bandolim ganha nova aceleração com Ian Coury (apresentações nos EUA e Europa), que aproxima virtuosismo e canção sem perder a clareza; e o acordeão de Mestrinho (turnês com Gilberto Gil e projetos próprios fora do país) faz a ponte entre os ritmos do nordeste brasileiro, o jazz e a música instrumental contemporânea. Contrabaixistas como Sidiel Vieira e Michael Pipoquinha sustentam o pulso com assinatura pessoal, enquanto a bateria encontra novas possibilidades expressivas tanto com Victor Cabral (dinâmica refinada e linguagem moderna) quanto com Mariá Portugal (residências e turnês na Europa),. No campo das madeiras, o clarinete de Joana Queiroz (projetos autorais e colaborações em circulação internacional) e o de Maria Beraldo (clarinete baixo em estéticas de fronteira, com apresentações na Europa) trazem uma paleta de timbres que aproxima tradição e invenção.
Esses encontros não acontecem isoladamente. Espaços como JazzNosFundos, Bona, Casa de Francisca, Centro da Terra e o Blue Note São Paulo compõem uma malha de clubes de jazz onde as músicas nascem em proximidade, amadurecem a cada apresentação e se eternizam em registros. Selos e coletivos independentes documentam esse fluxo com sessões ao vivo, séries digitais e lançamentos que levam a sonoridade daqui para circuitos de festivais lá fora. Ensaios abertos, oficinas e residências criativas alimentam a troca entre gerações: jovens autores testam peças novas ao lado de referências ativas, ajustando formas, relendo temas, abrindo espaço para improvisos que devolvem ao público a sensação de descoberta.
A engrenagem se completa com curadorias atentas e um público que aprendeu a escutar de perto. Programações sazonais propõem recortes — noites dedicadas ao choro contemporâneo, à música do nordeste brasileiro de invenção, ao repertório autoral paulistano — e criam continuidade: quando um trio volta ao palco depois de um mês, aquela mesma peça já virou outra, polida por trocas, viagens e novas parcerias. A presença de artistas em temporada, como Amaro Freitas ou Salomão Soares, permite que temas circulem entre formações diferentes; um motivo que começou no piano reaparece no violino de Ricardo Herz, vira contracanto no bandolim de Ian Coury e ganha fôlego rítmico renovado quando Victor Cabral ou Mariá Portugal reorganizam o pulso.
Há também uma inteligência de registro que reduz a distância entre palco e fonograma. Muitos discos recentes nasceram de temporadas curtas, gravadas com plateia ou logo após séries de shows, quando a música ainda carrega o calor do risco. Vídeos captados em alta qualidade, lançados por selos e canais independentes, ampliam o alcance: uma noite no JazzB, através da transmissão da plataforma Oh!Jazz, repercute em Lisboa, Berlim ou Tóquio. É esse corredor internacional que mantém em movimento carreiras como as de Edson Santana, Jorginho Neto, Daniel D’Alcântara, Eloá Gonçalves, Mestrinho, Pipoquinha ou Joana Queiroz, e que faz de São Paulo um ponto de passagem obrigatório para turnês que conectam América do Sul, Europa e Estados Unidos.
Esteticamente, essa geração rejeita fronteiras fixas. Convivem o desenho popular do choro, a síncope do samba, o assobio agreste do forró, a arquitetura harmônica do jazz e a pulsação afro-brasileira que fomenta grande parte das pesquisas rítmicas. O resultado é uma linguagem híbrida, de afeto e rigor técnico, que se vale de métricas irregulares, polirritmia, harmonias sofisticadas e um elegante jogo de dinâmica.
No fim, o que se consolida é um ecossistema: clubes que acolhem risco, artistas que compõem em diálogo com a plateia, produção independente que documenta e difunde, e uma escuta coletiva que legitima a ousadia. O que se ouve, então, é um coro de vozes instrumentais em plena forma, já dialogando com o mundo, mas comprometido com a experiência íntima do palco pequeno — aquele lugar onde cada gesto é percebido de perto e onde a música segue nascendo, noite após noite, do encontro generoso entre criação, escuta e partilha.
por Rodrigo Morte

